A única consequência possível de um povo que vibra com
sangue e ódio é o adoecimento de suas instituições. Uma delas é o Ministério
Público, o qual, em tese, fala pela sociedade brasileira supercampeã em
desigualdade social, discriminação racial, de gênero e outras mais variadas
formas.
Como porta-voz dessa sociedade nas relações processuais, o
MP tem prestado um excelente serviço em todos escalões - de Cabrobó até
Brasília, o posicionamento da instituição caminha no sentido de ser o
mais reacionário possível, inclusive em respostas exigidas nos concursos
para ingresso na carreira[1].
Não são raras as vezes que o Ministério Público opta pelo senso
comum que repudia a diferença. Um exemplo paradigmático foi quando, no
julgamento da descriminalização das drogas, o chefe da instituição Rodrigo
Janot naturalizou o chorume de comentários na rede social e foi além de todos
que se posicionaram contra: passou a inventar dados. Disse, entre outras
desinformações, que 90% das pessoas que fumam maconha se viciam; não
satisfeito, segundo ele, basta fumar uma vez para que a pessoa se torne
dependente química. Parece brincadeira de péssimo gosto, mas foi o argumento
encontrado pela autoridade máxima da instituição.
Quando a desinformação e autoritarismo rendem
aplausos, as prioridades mudam. Em tempos de chacina de 19 pessoas pela
polícia, o ouvidor da corporação paulista do Estado elencou alguns
motivos para que a PM assassinasse tanta gente com tamanha naturalidade. Um
deles: policiais acusados de matarem são sistematicamente alvos de
pedidos de absolvição pelo Ministério Público. A mesma conclusão foi da Human Rights Watch, a
qual analisou a atuação policial no Rio de Janeiro e percebeu
que “há má vontade do Ministério Público em investigar esses casos e
que normalmente as investigações só avançam quando há interesse social e
pressão por parte da mídia”
O Delegado de Polícia Orlando Zaccone percebeu a mesma coisa
e foi na sua tese de Doutorado pesquisar como promotores e promotoras fundamentavam o pedido
de arquivamento de casos em que quem está no banco dos réus não é
um dos p’s (pobre, preto e puta), mas sim um policial. Em entrevista ao Justificando,
ele esclareceu, basicamente, os porquês dessa benevolência:
O fundamento basicamente tem a grande pergunta do auto de
resistência: não como a polícia agiu, mas quem ela matou. Então, completada a
figura do inimigo, isto é, o traficante de drogas, e esse fato ocorrendo dentro
de favelas, de guetos, isso é colocado na escrita dos promotores de justiça
como elementos a justificar a morte.
Então é o seguinte: o Ministério Público é benevolente
apenas e tão-somente com policiais militares, pois entende que por trás de cada
assassinato há algo que o justifique, ou, ainda que não haja, "matar
bandido" é necessário. Uma das premissas fascistas é o arbítrio e a
naturalidade com as quais as instituições lidam com a violação maciça de
direitos humanos, em especial, se o alvo for um inimigo público. E em um país
desigual e racista, não há inimigo maior do que o jovem negro da
periferia.
Se esses jovens não são violados pela omissão do
Ministério Público no controle da polícia que mais mata no mundo,
são enviados para nossos presídios, a masmorra contemporânea, muito
por conta de uma lei de drogas racista, cuja principal razão de existir é
encarcerá-los, sob o protagonismo do Ministério Público de acusar e brigar
pela prisão a todo custo, contra qualquer forma de liberdade.
Fascismo vive de inimigos a serem combatidos. O
Ministério Público sabe disso melhor do que ninguém
Pela unidade da nação, que entrega sua liberdade em
nome de um bem maior, a existência de um inimigo interno é
a melhor coisa que uma instituição que descambou para o fascismo poderia
desejar. Atualmente, além do jovem pobre, o inimigo atende pelo nome de político
corrupto.
O termo é uma pegadinha, na verdade. Não são
corruptos todos os políticos que percebem uma vantagem financeira
indevida, mas especificamente políticos de um determinado partido - o PT. É
curioso que o partidarismo do MP seja sempre rebatido por analistas simpáticos
à instituição toda vez que um cacique do PSDB sofre um processo judicial. Tá
vendo? - desafiam. Para eles, digo que falta o recorte de classe
na análise: promotores e promotoras de justiça vêm de famílias elitizadas,
além de perceberem um salário de classe média alta. São pessoas que reproduzem
a opinião política majoritária na elite econômica, filiada no país ao
PSDB.
Por isso promotores são tão vorazes contra
"corruptos" do PT e políticos de demais partidos que representem
a imagem e o voto do pobre, do evangélico, do incauto; em parceria
com a magistratura, que sofre do mesmo mal, conseguem a liminar para prejudicar
os planos do partido em um dia (alguém lembra do pedido de prisão baseado em Marx e Hegel?). Contudo, quando
um helicóptero cheio de cocaína é descoberto, bem, aí não acontece nada
mesmo - há outras razões para o partidarismo, além do recorte de classe. Processo em face de tucanos rende menos mídia e menos tapinha
nas costas nas confraternizações, por exemplo.
Então está feito o disclaimer. Político corrupto
é uma categoria bem específica, mas é capaz de "unir" o país a
ponto de milhões de pessoas ocuparem as ruas nas mais variadas cidades e
aplaudirem quem está combatendo esse inimigo. No caso do Judiciário, Sérgio
Moro e os Procuradores do Ministério Público Federal ganharam tamanho
empoderamento e capital político a ponto de reunir duas milhões de
assinaturas pelas 10 medidas contra a corrupção.
Um pouco diferente da batalha contra o jovem periférico, a
guerra contra a corrupção esconde outra motivação preocupante: o sequestro
da política pelo poder Judiciário - entendidos nesse contexto como magistratura
e ministério público. A Judicialização da política é ainda mais preocupante
quando os juristas não escondem uma preferência partidária,
muito menos o gosto agridoce do poder.
Voltando, 10 medidas contra a corrupção é, de fato, um
ótimo nome para um projeto de lei. Quem seria oposição a 10 medidas contra a
corrupção? O Procurador que percorre o país na defesa delas é bem arrumado, tem
gel no cabelo penteado para o lado e sorriso bobo. Verdadeiro menino bom.
Ocorre que por trás de tanta bondade, reside um projeto de lei que rebaixa o
Habeas Corpus, legaliza prova ilícita, reduz a prescrição, cria crimes cuja
prova deve ser feita pelo réu e demais arbítrios que destroem a Constituição
Federal. A crítica não é apenas a Deltan Dallagnol, mas sim, a toda carreira,
ante o simbolismo e representatividade de sua atuação.
"Contra o político corrupto vale tudo, o que não
aguentamos mais é impunidade" - dirá o mantra da nação,
empunhando suas bandeiras por um Brasil melhor contra-tudo-que-está-aí.
Todavia, o procurador de sorriso bobo e o Ministério
Público são incapazes de fazer, por terem submergido ao fascismo, a
constatação de que estamos no pódio de países que mais prendem no mundo.
Impunidade aqui é piada e qualquer projeto, qualquer um mesmo, que venha a
arrancar mais garantias das pessoas, endurecer mais uma instituição já
autoritária e empoderada, vai piorar o que já está péssimo. Vai prender o
político corrupto? Vai, mas vai prender MUITO o jovem pobre também - fora que,
convenhamos, violar a Constituição para cumprir a lei é um contrassenso tão
grande que não vale nem adentrar no assunto.
Tatue na testa para não esquecer: quem vai pagar essa conta
de oba-oba contra a corrupção é o pobre, o negro, o jovem, a mulher, o político
corrupto, o honesto, ou quem mais não os agrade. Por isso, muita gente
séria tem se levantado contra a perda dos direitos e garantias individuais,
pela Constituição e se opondo a olhar no cárcere solução para o que quer que
seja. É a lógica do anti-punitivismo, que, infelizmente, não vende jornal,
nem passa às 20h na tela da Globo. Para quem quiser conhecer a opinião de
renomados estudiosos de todo país desconstruindo, medida a medida, esse absurdo
de marketing institucional, sugiro a leitura do boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Pelos aplausos, poder de investigar e serem o salva-guarda
da nação, o MP rebaixa o Estado de Direito no país - já
tão baixo. Para quem ainda não entendeu, o problema não é ser contra ou a
favor da corrupção - acredito que é até tosco imaginar alguém a favor. O
cenário complica quando alguém, ou alguma instituição, acredita ser a
personificação da moral e da ética, quando, a bem da verdade, é só a
personificação do fascismo mesmo.
Brenno Tardelli é diretor de redação
do Justificando
[1] Há exceções de promotores e promotoras
compromissados com a Constituição Federal. Ocorre que, além de serem cada vez
mais raros, são perseguidas dentro da própria carreira e servem como prova
de que a regra é outra, muito mais sórdida.
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