A democracia e seus inimigos
Senadores e juízes canalhas atentam contra a soberania popular porque não tem medo de morrer. Quando alguns deles começarem a ser mortos a normalidade política retornará ao país?
Ao comentar o resultado da votação no Senado o advogado
de Dilma Rousseff afirmou:
"Nenhum governo se estabiliza ou estabilizará o País
com um ruptura democrática como esta. Poder na democracia vem das urnas, não
vem de uma fratura constitucional como está sendo feita. Não há base para
afastar a presidenta Dilma Rousseff"
Cardozo está rigorosamente certo. A democracia é um regime
político que tem duas características essenciais: soberania popular e igualdade
jurídica entre os cidadãos. Ambos são prescritos na CF/88: art. 1o., parágrafo
único “Todo o poder emana do povo...”; art. 5o., caput “Todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”.
O afastamento da presidenta com base num artifício (Dilma
Rousseff não praticou pedaladas fiscais como demonstraram os peritos) durante
um julgamento do qual participam dezenas de senadores corruptos (e que tem
motivos pessoais para odiá-la em razão dela ter apoiado as investigações da
Lava Jato) configura um duplo rompimento do princípio democrático. Uma violação
evidente dos citados art. 1o., parágrafo único, e do art. 5o, caput, da CF/88.
Além de estabelecer uma distinção ilegal entre Dilma
Rousseff (uma mulher honesta que não foi acusada de receber propina como Aécio
Neves, José Serra, Aloysio Nunes, Michel Temer e outros) e seus algozes
(bandidos que deveriam estar presos e não julgando a presidenta do país), a
farsa do Impedimento está rasgando mais 54 milhões de votos. O poder originário
dos cidadãos, a soberania popular, não poderia ser ignorada pelos senadores,
nem pelo Poder Judiciário. O Estado não é propriedade do Senado, a presidência
da república não é um cargo que pode ser atribuído a quem quer que seja sem o
voto popular.
Nossa democracia está sob grande ameaça. Como em 1964, um
punhado de marginais está se apropriando do poder político sem dar satisfação
ao povo brasileiro. As origens remotas desta crise, porém, não decorrem apenas
da Lava Jato e do esforço que os corruptos liderados por Michel Temer estão
fazendo para ficar impunes.
Aqui mesmo no GGN já sustentei e demonstrei que nossa
democracia é imperfeita, pois a soberania popular nunca penetrou no Poder
Judiciário. Sobre o assunto vide
É por esta razão, aliás, que costumo dizer que nossa democracia é na verdade um
liberalismo oligárquico
O princípio oligárquico aflorou com força durante a crise em
curso. Isto explica porque, em troca de aumento salarial, os Juízes preferiram
ajudar um bando de senadores aloprados e marginais a rasgar a Constituição
Federal. O fenômeno, contudo, não é inteiramente novo.
Desde que foi criado em Atenas, o regime democrático se viu
obrigado a enfrentar inimigos externos e internos. O primeiro inimigo externo
enfrentado pela democracia ateniense foi Xerxes (II Guerra Médica). Após a
derrotar os persas com ajuda de seus aliados, Atenas viu suas relações com
Esparta se deteriorarem. As duas principais cidades gregas acabaram entrando em
guerra. Sobre este conflito diz Tulcídides:
“A causa mais verdadeira, embora menos declarada, é penso
eu, que os atenienses, tornando-se poderosos, inspiraram temor aos lacedemônios
e os forçaram a lutar.” (História da Guerra do Peloponeso, Livro I -
Edição bilíngue, Tucídides, editora Martins Fontes, São Paulo, 2013, p. 33)
Derrotada na Guerra do Peloponeso, Atenas se viu sob
administração militar espartana. Com ajuda dos vitoriosos, os aristocratas
atenienses voltaram ao poder e instituíram um regime tirânico. Alijados do
poder, os democratas recomeçaram a luta interna quando os espartanos retornaram
à sua cidade. Em pouco tempo Atenas conseguiu se livrar da tirania. Todavia, o
novo regime democrático não conseguiu recuperar o poder e o prestígio da
cidade. E algumas décadas depois da restauração democrática, como várias outras
cidades, Atenas também acabou sendo conquistada por Filipe, rei caolho da
Macedônia.
O combate contra os inimigos internos e externos da
democracia brasileiro também está ocorrendo neste momento. Os internos são bem
conhecidos (Michel Temer, José Serra e o bando de senadores aloprados e
marginais que eles lideram). Os inimigos externos da democracia brasileira são
o “mercado” (expressão vaga através da qual são designados os investidores que
querem impor seus interesses acima dos interesses dos brasileiros) e a
Embaixada dos EUA (que, sem dúvida alguma, ajudou a coordenar as ações que
minaram a soberania popular e o poder legítimo atribuído a Dilma Rousseff).
A guerra contra a tirania de Michel Temer já começou nas
ruas e nas redes sociais. Ela tende a aumentar e a se aprofundar se a farsa do
Impedimento prevalecer. O rompimento da legalidade imposto ao país pelos
inimigos da democracia certamente provocará um trauma doloroso e violento. Mas
o povo conseguirá recuperar seu poder de uma maneira ou de outra. E quando isto
ocorrer será necessário aprovar Leis que defendam o regime dos ataques internos
e externos.
Quando restauraram sua democracia, os atenienses aprovaram
uma Lei que bem pode servir de inspiração aos brasileiros. O Decreto de
Demofante contra a tirania data de 410 aC e tem o seguinte conteúdo:
“O Conselho e a assembléia decidiram; Éantis era a tribo
que presidia; Clígenes era secretário; Boétos era presidente; Demofante propôs
o seguinte: A data desse decreto é o Conselho dos Quinhentos, escolhido por
sorteio, sendo Clígenes o primeiro-secretário. Qualquer pessoa que supria a
democracia em Atenas ou sirva em qualquer cargo público, enquanto a democracia
estiver suspensa, será inimigo dos atenienses e deverá ser morto sem punição
para quem o matar; e seus bens deverão ser confiscados e um décimo deverá ser
destinado às deusas; aquele que o tiver matado ou tiver conspirado contra ele,
deverá ficar livre de profanação; todos os atenienses têm de jurar sacrifícios
ilibados pelas tribos (phylaí) e demos que vão matá-lo. E o juramento deverá
ser este: “Vou matar por palavra e ação e por minhas próprias mãos, se isso
estiver ao meu alcance, todo aquele que subverter a democracia em Atenas,
ocupar qualquer cargo público enquanto a democracia estiver suspensa, tentar se
tornar um tirano ou ajudar a estabelecer a tirania. E se alguém matar tal
pessoa, vou considerá-lo puro aos olhos dos deuses e deusas, porque terá matado
um inimigo dos atenienses e venderei todos os bens da pessoa assassinada e
darei metade dessa renda a seu assassino, sem privá-lo de nada; e se alguém
morrer ou matar ou tentar matar essa pessoa, vou cuidar dele e de seus filhos
da mesma maneira que Harmódio e Aristogíton e seus descendentes. E declaro
nulos todos os juramentos feitos contra a democracia ateniense, em Atenas ou em
qualquer outro local”. Todos atenienses devem prestar seu juramento de
sacrifícios ilibados antes do festival das Dionísias. E devem rezar para que
aqueles que observem o juramento sejam abençoados, enquanto aqueles que o
quebrem, pereçam, eles e seus descendentes.” (Leis da Grécia Antiga,
Ilias Arnaoutoglou, editora Odysseus, São Paulo, 2003, p. 85/86)
Os aspectos religiosos desta lei certamente caíram em
desuso. Mas no essencial, uma tal Lei certamente ajudará a preservar nossa
democracia contra senadores e juízes canalhas que atentam contra a soberania
popular porque não tem medo de morrer. Quando alguns deles começarem a ser
mortos a normalidade política retornará ao país? Esta, meus caros, é uma boa
pergunta.
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